sábado, 29 de janeiro de 2011

1 O currículo e o direito à educação

1 O currículo e o direito à educação
1.1 O que entendemos como currículo escolar
A palavra currículo é muito familiar a todos nós que trabalhamos nas escolas e nos sistemas educacionais. Devido à familiaridade com o termo, às vezes deixamos de refletir com cuidado sobre o seu sentido.
iDiferentes entendimentos freqüentemente parecem denominar o que entendemos por currículo: os conteúdos a serem ensinados e aprendidos; as experiências de aprendizagem escolares a serem vividas pelos estudantes; os planos pedagógicos elaborados por professores, escolas e sistemas educacionais; os objetivos a serem alcançados por meio do processo de ensino; os processos de avaliação que terminam por influir nos conteúdos e nos procedimentos selecionados nos diferentes graus da escolarização.
Desse modo, vemos que estão associadas à palavra currículo distintas concepções, que, certamente, provêm de como a educação é concebida historicamente e das influências teóricas presentes no seu entendimento.
Essas concepções refletem diferentes compromissos e posições teóricas. O que podemos afirmar, no entanto, é que as discussões curriculares envolvem os temas relativos aos conhecimentos escolares, aos procedimentos pedagógicos, às relações sociais, aos valores que a escola inculca, às identidades dos estudantes. Cabe ressaltar que as discussões curriculares inevitavelmente recaem sobre questões relativas ao conhecimento, à verdade, ao poder e à identidade (SILVA, 1999), com maior ou menor ênfase.
Como estamos concebendo, então, a palavra ‘currículo’ nesta sala?
Pretendemos focalizar o currículo como um campo de conhecimento pedagógico no qual se destacam as experiências escolares em torno do conhecimento, levando sempre em consideração a especificidade da escola, em meio a relações sociais e a sua contribuição para a construção das identidades dos estudantes. Assim, associa-se o currículo ao conjunto de esforços pedagógicos desenvolvidos com intenções educativas (MOREIRA e CANDAU, 1996).
Portanto, estamos empregando a palavra currículo para nos referir às atividades organizadas por instituições escolares. Assim, essa palavra tem sido também empregada para indicar efeitos que não estão explicitados e nem sempre são claramente percebidos pela comunidade escolar. É o que denominamos de currículo oculto, que envolve, dominantemente, atitudes e valores transmitidos, subliminarmente, pelas relações sociais e pelas rotinas do cotidiano escolar. Esse é um conceito importante, do qual fazem parte rituais e práticas, relações hierárquicas, regras e procedimentos, modos de organizar o espaço e o tempo na escola, modos de distribuir os estudantes por grupamentos e turmas e, ainda, mensagens implícitas nas falas dos professores e nos livros didáticos.
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É no currículo que se sistematizam os esforços pedagógicos na escola. Ele é algo como o coração da escola, o espaço central da atuação pedagógica. É fundamental o papel do educador no processo curricular, o que implica a necessidade de discussões e reflexões sobre o currículo, seja aquele formalmente planejado e explicitado ou não. As reflexões e discussões sobre currículo não podem deixar de recorrer aos documentos oficiais, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, as diversas Diretrizes Curriculares Nacionais, os Parâmetros Curriculares Nacionais, as Propostas Curriculares Estaduais e Municipais. É nesses documentos que se encontram os subsídios e sugestões sistematizadas para o trabalho pedagógico escolar. Mas também é preciso recorrer aos estudos que vêm sendo feitos, nacional e internacionalmente, por pesquisadores e estudiosos do campo. Análises desses estudos, como veremos mais aprofundadamente no item 2.2 desta sala, permitem compreender, por exemplo, a origem de mudanças nas tendências curriculares (MOREIRA, 2002)
1.2 O conhecimento escolar como centro do currículo
O conhecimento escolar é tema central das discussões sobre o currículo. Esse fato envolve o pressuposto de que a escola precisa preparar-se para socializar os conhecimentos escolares, com o objetivo também de facilitar o acesso do estudante a outros saberes. Os conhecimentos construídos socialmente e que circulam nos diferentes espaços sociais constituem direito de todos.
Denominamos conhecimento escolar aquele conhecimento que tem uma construção específica para a escola e não constitui uma simplificação de conhecimentos produzidos fora da escola. Assim, o conhecimento escolar tem características próprias, é distinto de outras formas de conhecimento. Sua produção e seleção, no entanto, se dão em meio a relações de poder estabelecidas no aparelho escolar e entre esse aparelho e a sociedade (SANTOS, 1995).
Os saberes e as práticas socialmente construídos são a origem dos conhecimentos escolares. Esses provêm de saberes e conhecimentos socialmente produzidos nos chamados âmbitos de referência dos currículos”. Podemos considerá-los como correspondendo: (a) às instituições produtoras do conhecimento científico (universidades e centros de pesquisa); (b) ao mundo do trabalho; (c) aos desenvolvimentos tecnológicos; (d) às atividades desportivas e corporais; (e) à produção artística; (f) ao campo da saúde; (g) às formas diversas de exercício da cidadania; heart aos movimentos sociais (TERIGI, 1999).
Os conhecimentos que se originam em tais âmbitos são selecionados e, de certa forma, creestruturados para constituírem o conhecimento escolar. Segundo Moreira e Candau (2006), os conhecimentos de referência passam por um processo de recontextualização.
Terigi (1999) nos ajuda a compreender esse processo de recontextualização do conhecimento escolar. O que o estudante aprende é o produto, o resultado de um processo que não inclui, muitas vezes, o percurso de construção dos conhecimentos apresentados. Há, portanto, um certo grau de descontextualização nos conteúdos escolares devido a esse processo, já que os saberes e as práticas produzidos nos âmbitos de referência do currículo não podem ser ensinados tal como funcionam em seu contexto de referência. Portanto, há necessidade de se evitar uma forte descontextualização para não se perder o sentido dos conteúdos (TERIGI, 1999).
.3 Os direitos dos estudantes e o currículo escolar
Miguel G. Arroyo é um dos autores que têm se preocupado com o currículo e os sujeitos envolvidos na ação educativa: educandos e educadores. Arroyo tem ressaltado nesses estudos diversos aspectos, tais como: a importância do trabalho coletivo na educação para a construção de parâmetros de ação pedagógica; o fato de serem os educandos sujeitos de direito ao conhecimento; a necessidade de se mapearem imagens e concepções dos educandos para subsidiar o debate sobre os currículos.
Com base em discussões apresentadas por esse autor (ARROYO, 2006), apresentamos alguns pontos de reflexão sobre o tema:
  • O currículo e os sujeitos da ação pedagógica
  • O currículo e a qualidade do ensino
  • Os educandos como sujeitos de direitos
iuO currículo e os sujeitos da ação pedagógica
O coletivo dos educadores planeja a execução dos seus currículos por área ou por ciclo. Individual e coletivamente, os conteúdos curriculares são revisados. Junto com os administradores das escolas, professores escolhem e planejam prioridades e atividades, reorganizam os conhecimentos, intervindo na construção dos currículos. O avanço dessa prática de trabalho coletivo está se constituindo em uma dinâmica promissora para a reorientação curricular na educação básica. Esse coletivo de profissionais termina produzindo e selecionando conhecimentos, materiais, recursos pedagógicos, de maneira que eles se tornam produtores coletivos do currículo.
Os educandos, sujeitos centrais da ação pedagógica, são condicionados pelos conhecimentos que deverão aprender e pelas lógicas e tempos predefinidos em que terão de aprendê-los. Muitos estudantes têm problemas de aprendizagem, e talvez muitos desses problemas resultem das lógicas temporais que norteiam as aprendizagens e dos recortes com os quais são organizados os conhecimentos nos currículos. Tais lógicas e ordenamentos não podem ser considerados intocáveis.
Passo importante para o coletivo das escolas: investigar os currículos a partir dos educandos. As novas sensibilidades para com os educandos são importantes para se repensar e reinventar os currículos escolares. Os estudantes estão mudando e obrigando-nos a rever o olhar sobre eles e sobre os conteúdos da docência.

2 O currículo como instrumento de viabilização do direito à educação
Outra inquietação permeia a análise dos currículos: trata-se da preocupação com o rebaixamento da qualidade da docência e da escola. A reação das escolas, dos docentes e gestores diante dos dados que informam a desigualdade escolar, em geral, é culpar os estudantes, suas famílias, seu meio social, sua condição racial pelas capacidades desiguais de aprender. Podemos, sim, ter outro entendimento sobre isso.
Há um argumento que retarda a tentativa de se criar esse novo entendimento: o fato de a desigualdade ser socialmente criada. No entanto, as ciências consideram que toda mente humana é igualmente capaz de aprender.
hfgEmbora hoje muitas escolas e vários docentes tenham essa preocupação, há muita dificuldade em superar o olhar classificatório dos estudantes e o padrão de normalidade bem sucedida na gestão dos conteúdos. Ainda são aplicados “remédios” para os mal-sucedidos, os lentos, os desacelerados, os fracassados. Exemplo disso é o reforço e a recuperação paralela, agrupamentos em turmas de aceleração, dentre outros.
Podemos encontrar iniciativas corajosas de coletivos que repensam o currículo em função dessa questão da desigualdade. Assim, há estudos e propostas de revisão da lógica que estrutura os conhecimentos dos tempos de aprendizagem. Novos estudos sobre a mente humana são buscados, como o de Gerome Bruner (2001), para repensar os currículos que organizam conhecimentos.
O direito à educação e o currículo como instrumento para viabilizar esse direito nos obrigam a desconstruir crenças cristalizadas e a repensá-las à luz de critérios éticos:
oi- para desconstruir a crença na desigualdade da capacidade de aprender, é preciso confrontá-la com o direito igual de todos à educação, ao conhecimento e à cultura.
oi- os avanços das ciências desconstroem nossos olhares hierárquicos e classificatórios das capacidades e ritmos dos estudantes, além de nos levarem a visões mais respeitosas e igualitárias. Há necessidade, portanto, de entender mais os processos de aprender dos currículos. A questão central continua a ser o que ensinar, como ensinar, como organizar os conhecimentos, tendo como parâmetro os processos de aprendizagem dos educandos em cada tempo humano.
oi- à medida que essas questões vindas da visão dos estudantes e suas aprendizagens interrogam nossos currículos, somos levados a rever as lógicas em que estruturamos os conteúdos escolares.



2.1 Os educandos como sujeitos de direitos
kjTomando os educandos como sujeitos de direito, os currículos são responsáveis pela organização de conhecimentos, culturas, valores, artes a que todo ser humano tem direito. Isso significa inverter as prioridades ditadas pelo mercado e definir as prioridades a partir do respeito ao direito dos educandos. Somente partindo do conhecimento dos educandos como sujeitos de direitos, estaremos em condições de questionar o trato seletivo e segmentado em que ainda se estruturam os conteúdos.
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Isso exige repensar a reorganização da estrutura escolar e do ordenamento curricular legitimados em valores de mérito e sucesso, em lógicas excludentes e seletivas, em hierarquias de conhecimentos e de tempos, em cargas horárias.
A superação das hierarquias, das segmentações e dos silenciamentos entre os conhecimentos e as culturas pode ser um dos maiores desafios atuais para a organização dos currículos. Estes têm sido repensados, sobretudo, em função do progresso cientifico e tecnológico. Assim, os currículos se tornam cada vez mais complexos, o que não significa que questionem os processos humanos regressivos que acontecem na sociedade e que cada vez mais parecem precarizar a vida dos educandos.
As exigências curriculares e as condições de garantia do direito à educação e ao conhecimento se distanciam pela precarização da vida dos setores populares.
Por um lado, o direito à educação e, por outro, a vivência da negação dos direitos humanos mais básicos questionam o ordenamento curricular, a lógica seqüenciada, linear, rígida, previsível, para sujeitos disponíveis, liberados, em tempo integral, sem rupturas, sem infreqüências, somente ocupados no estudo, sem fome, protegidos, com a sobrevivência garantida.
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A escola vem fazendo esforços para se repensar em função da vida real dos sujeitos que têm direito à educação, ao conhecimento e à cultura. A nova LDB no 9.394/96 recoloca a educação na perspectiva da formação e do desenvolvimento humano. O direito à educação é entendido como direito à formação e ao desenvolvimento humano pleno. Essa lei se afasta, no seu discurso, da visão dos educandos como mão-de-obra a ser preparada para o mercado e reconhece que toda criança, adolescente, jovem ou adulto tem direito à formação plena como ser humano. Reafirma que essa é uma tarefa da gestão da escola, da docência e do currículo.
2.2 Teorias do currículo
Pressupostos
Ao pensarmos a gestão de uma escola inclusiva, nosso olhar se volta primeiramente para o currículo concebido aqui como um eixo articulador das ações educacionais. Tema de grande complexidade, o currículo tem desafiado os profissionais envolvidos tanto na prática pedagógica, quanto nos programas de formação dos professores.
Por que o emprego do plural no subtítulo desta Sala Ambiente, “teorias do currículo”?
nPorque os estudos sobre o currículo não podem deixar de considerar a influência de diferentes – ou divergentes – paradigmas teóricos, originários de contextos sociais diversos, sobre a constituição do campo do currículo no Brasil. Entendemos que, embora de forma geral, essa opção explicita as fronteiras teóricas de nossa abordagem.
Partimos da idéia de que ocorreram mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais importantes na sociedade brasileira, sobretudo durante a segunda metade do século XX, suscitando uma multiplicidade de questões relacionadas não somente ao direito, às finalidades e ao acesso à escola, mas, também, aos que nela interagem. A essas mudanças, somam-se a intensa especialização e a diversificação das áreas do conhecimento, o que influencia a organização do currículo e as perspectivas teóricas que o fundamentam.
Tendo como referência alguns estudos internacionais que abordam especificamente o currículo concebido e colocado em prática em contextos educacionais distintos, pesquisadores brasileiros também deslocam seus focos de interesse dos problemas macrossociais para questões próprias dos sistemas de ensino e da escola, sem, no entanto, perder de vista as suas dimensões estruturais. A escola passa a ser vista como um espaço social complexo, caracterizado por perspectivas divergentes, no qual se confrontam, se justapõem ou se harmonizam concepções teóricas e posições político-pedagógicas muitas vezes contraditórias. Os professores, os gestores e a comunidade educacional compõem e negociam definições da realidade e, dessa maneira, constroem, reconstroem ou reproduzem uma certa ordem escolar, que nem sempre coincide com aquela preconizada pelas instâncias oficiais.
jPara entender esse movimento, é necessário recorrer à origem do pensamento curricular brasileiro.

Segundo Moreira (2003), esse fenômeno remonta aos anos de 1920 e de 1930. Sob a influência de autores norte-americanos, associados ao pragmatismo e a teorias elaboradas por pensadores europeus, os pioneiros da educação se propuseram a estabelecer uma ruptura com a escola tradicional, ressignificando o debate educacional, modernizando métodos e estratégias de ensino e de avaliação, democratizando a sala de aula e a relação pedagógica. Ficou evidente a necessidade de constituir um sistema de educação para o país, o que favoreceu a importação de idéias ou teorias, mas também de modelos pedagógicos.
Segundo Moreira (2003), a transferência educacional para o Brasil passou por diferentes etapas: de uma adesão ingênua (implicando uma adequação rudimentar ao contexto receptor), passando por uma adaptação instrumental (que requer um acentuado grau de aceitação e de acomodação de interesses) e uma adaptação crítica (preocupada com a autonomia cultural e o compromisso com as camadas mais desfavorecidas), até chegar a uma rejeição ingênua (caracterizada por um significativo fechamento à influência estrangeira e pela supervalorização do que se cria no contexto receptor).
Mas a estruturação do campo do currículo se deu efetivamente na década de 1970, com a introdução da disciplina currículos e programas nos cursos de formação docente, consistindo numa espécie de transferência instrumental de teorizações americanas, efetivada pela importação e adaptação de modelos educacionais à nova ordem técnico-burocrática (instituída pelo regime militar em 1964). Ora, esse tipo de transferência freqüentemente não responde às singularidades do sistema de ensino (receptor) e implica a apropriação de modelos escolares descontextualizados das condições originais de sua produção.

2.3 A sociologia do currículo desenvolvida na Grã-Bretanha
Críticas e tendências na organização curricular
Para se estudar a questão do currículo, faz-se necessário recorrer a algumas reflexões teóricas que promoveram rupturas epistemológicas importantes, a saber:
  • A sociologia do currículo desenvolvida na Grã-Bretanha
  • A abordagem norte-americana
  • A abordagem francesa referente à sociologia da educação
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A sociologia do currículo desenvolvida na Grã-Bretanha
A sociologia da educação foi uma das áreas do conhecimento mais atingidas pelas mudanças estruturais dos anos 1960, tendo sido levada a explicar as funções sociais da escolarização e os limites dos modelos meritocráticos, bem como ampliar o universo de críticas relacionadas com os sistemas de ensino. Esses modelos não somente atestavam que a escola era acessível aos “melhores estudantes”, independentemente da sua origem social e do sexo, mas também justificavam uma organização escolar diferenciada segundo as aptidões individuais e as classes sociais. Foi nesse contexto que surgiu na Grã-Bretanha a nova sociologia da educação, ou a também chamada sociologia do currículo, que rejeitou desde o início a abordagem funcionalista predominante.
Diferentemente dos estudos macro, essa abordagem interessou-se pelos processos que ocorrem nas escolas e salas de aula, pelos conteúdos e saberes incorporados aos programas e cursos, pelas interações que os atores estabelecem no cotidiano escolar. As reflexões teóricas e empíricas de Basil Bernstein, que analisam as formas de controle veiculadas na escola, e as de Michael Young, que se interessam pelos planos de ensino e pelas formas de avaliação, são centrais nessa nova perspectiva científica.

2.4 A abordagem norte-americana da educação
Sob a influência das teorias críticas (marxistas e neomarxistas) que qualificaram a educação como instrumento de reprodução das relações de dominação e das teorias da resistência, a perspectiva norte-americana desenvolve, desde a década de 1960, uma análise crítica inspirada principalmente nos trabalhos de Bowles e Gintis.
Segundo Silva (1992, p. 67), esses autores ressaltam “a contradição entre a ênfase nos aspectos democráticos existentes na esfera política e o caráter autoritário e despótico da produção [...], entre as necessidades de legitimação e as necessidades de acumulação do capitalismo, processos nos quais a escola está centralmente implicada”. Aos olhos das teorias críticas, todos os estudos sobre o currículo ou sobre as mudanças na organização escolar devem considerar as perspectivas subjetivas dos professores concernentes aos saberes que ensinam, à pedagogia que colocam em prática, ao engajamento na carreira e à constituição de sua identidade profissional.
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As teorias da resistência, por sua vez, têm contribuído para ampliar a reflexão crítica sobre os conteúdos “ocultos” veiculados na escola. O termo currículo oculto foi empregado para designar certas características da vida escolar suscetíveis de marcar, em profundidade, a personalidade do estudante. Além disso, teóricos como Michael Apple (que estabelece uma vinculação entre ideologia e currículo e entre educação e poder) e Henry Giroux (que reivindica um uso mais dialético e heurístico do conceito de resistência) procuram correlacionar as idéias de contradição, de luta e de resistência observadas no interior das instituições educacionais com uma reflexão sobre os mecanismos de dominação ideológica, vislumbrando uma prática pedagógica crítica voltada para a emancipação.
Segundo Moreira (2003, p. 75), “tanto Apple como Giroux rejeitam o discurso do planejamento e do controle e os modelos de organização curricular a eles associados”, propondo um discurso que vê a pedagogia como uma forma de política cultural. Esses autores não elegeram os saberes escolares como o foco principal de suas reflexões, como o fizeram os sociólogos do currículo na Grã-Bretanha. Sua perspectiva de análise é mais geral e reafirma a necessidade de engajamento na luta política. A questão do conhecimento aparece de forma mais pontual nos textos publicados mais recentemente.
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A perspectiva emancipatória e engajada, que caracteriza as reflexões dos teóricos críticos e da resistência, supõe a “possibilidade da criação, pelos educadores radicais, de uma linguagem capaz de fazer com que os professores levem a sério o papel que a escolarização desempenha na vinculação de conhecimento e poder” (GIROUX; MACLAREN, 2002, p. 127-128). Eles devem preparar-se para lidar com um “imaginário radical”, isto é, um discurso que oferece novas alternativas para o desenvolvimento de relações sociais democráticas, que estabelece elos entre o político e o pedagógico, a fim de incentivar o aparecimento de “contra-esferas públicas” implicadas seriamente em articulações e práticas da democracia radical. Visando subverter os processos de socialização, essas esferas seriam contra-hegemônicas, permitindo um entendimento mais político, teórico e crítico da dominação e do tipo de “oposição ativa” que deve ser engendrada.

2.5 A abordagem francesa referente à sociologia da educação
O pensamento de autores clássicos é fundamental para entender a teoria curricular na França. São eles: Bourdieu e Passeron; Isambert-Jamati e Forquin; Dubet e Martuccelli; Bernard Charlot.
Os trabalhos de Bourdieu e Passeron, especialmente nas obras Os Herdeiros e A Reprodução, são referências fundamentais aos estudos sobre a escola e a cultura escolar.
Para exercer a função de legitimação delegada pelo grupo dominante, a escola transmite conteúdos selecionados segundo os seus interesses. Nesse sentido, “uma cultura puramente escolar não é somente uma cultura parcial ou uma parte da cultura, mas uma cultura inferior porque os elementos que a compõem não têm o mesmo sentido que teriam num conjunto mais amplo” (BOURDIEU; PASSERON, 1964, p. 33).
A cultura transmitida pela escola apresenta-se, então, como objetiva e inquestionável, embora seja arbitrária e de natureza social (resultante, portanto, de relações de força).
A cultura escolar inculca nos indivíduos um conjunto de categorias de pensamento e de expressão que possibilita o relacionamento entre si e difunde uma cultura de classe fundada na primazia de certos valores, favorecendo uma relação de cumplicidade e de comunicação específica.
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Os conteúdos curriculares transmitem regras morais e maneiras de perceber o mundo, dotando os estudantes de uma lógica intelectual comum, que constitui o “habitus culto” de sua época. O conceito de habitus está no centro da teoria de Bourdieu e de seus colaboradores, tendo sido empregado, desde os primeiros trabalhos, para designar um “sistema de disposições duráveis e transmissíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes”, isto é, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações. O conjunto dessas disposições funda a constância e a relativa coerência dos comportamentos e determina o modo como cada grupo social lê, avalia a realidade e se move na sociedade. O habitus se manifesta no dia-a-dia, correspondendo ao “senso prático”, e permite aos indivíduos adaptarem sua vida cotidiana às exigências sociais de maneira automática, sem precisarem recorrer a uma reflexão consciente.
ouMotivados pela compreensão dos efeitos perversos da escolarização – pois a oferta escolar não é homogênea e não tem sempre a mesma eficácia – e pela possibilidade de desvelar a prática docente visando enfrentar o poder das estruturas organizacionais, os estudos de Isambert-Jamati (1990) e de Forquin (1990) introduzem novos elementos ao debate educacional, reorientando o panorama intelectual dos anos seguintes.
Considerando que as mutações do mundo atual impõem à escola grandes desafios, principalmente nos contextos multiculturais, Forquin (2001, p. 139-143) ressalta a necessidade de repensar a questão dos conteúdos curriculares a partir de respostas centradas em diferentes concepções:

2.6 Concepções da abordagem francesa
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1. Uma resposta centrada no neutralismo cultural, que supõe reduzir o currículo a um conjunto de saberes instrumentais e de ferramentas cognitivas formais, considerados válidos para todos na medida em que excluem toda a preferência axiológica, toda a referência intelectual, toda a singularidade cultural ou histórica.
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2. Uma resposta científica, que privilegia os conhecimentos científicos e tecnológicos, vistos como os únicos a portarem racionalidade e universalidade, em detrimento dos ensinamentos literários e dos saberes “hermenêuticos”.
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3. Uma resposta pautada no etnocentrismo assimilacionista, que, em nome de justificações universalistas, conduz a impor a todos os estudantes referências e postulações características da tradição cultural dominante no interior de um dado país.
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4. Uma resposta multiculturalista separatista ou segregacionista, que, preocupada com a preservação da identidade, apregoa uma diferenciação precoce dos programas de estudos ou, mais precisamente, a instalação de redes escolares distintas para recrutar seu público a partir de critérios de vinculação comunitária, sociocultural ou étnico-cultural.
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5. Uma resposta multiculturalista integradora, que introduziria um pluralismo de referências culturais no interior das estruturas e dos programas “unitários” de ensino, visando favorecer o respeito, os intercâmbios, o diálogo, a interação, a intercomunicação e um enriquecimento cultural mútuo.
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6. Uma resposta neo-universalista aberta, de caráter mais crítico e dialético, que assentaria a tolerância e o intercâmbio sobre um núcleo de saberes e de valores verdadeiramente “transculturais”, colocando-os no centro de um currículo unitário, que evitaria os riscos do etnocentrismo e os perigos do relativismo.
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Essa miríade de perspectivas teóricas converge para a idéia de uma cultura escolar de múltiplas dimensões, à medida que a organização escolar (estruturação do tempo, ritmos cotidianos da classe, seleção de disciplinas, programação das atividades pedagógicas) expressa um tipo de racionalidade escolar que se assemelha à racionalidade econômica e à racionalidade política das sociedades modernas (VERRET, 1975). Daí a importância da experiência escolar e da relação com o saber.
Dubet e Martuccelli (1996) esboçam uma sociologia da experiência escolar, que procura caracterizar a heterogeneidade das experiências construídas pelos estudantes em relação com a atividade escolar, tendo como referência um estudo sócio-histórico minucioso do sistema educacional francês (abrangendo desde a escola elementar até o liceu). Visando produzir uma leitura crítica da escolarização, esses autores reformulam a hipótese clássica de que a escola não funciona em benefício de todos, acrescentando o fato de que sua natureza varia muito significativamente de um ponto a outro do sistema. No centro de um quadro administrativo homogêneo, a escola se diversifica tanto que pode ser considerada como referência de socialização e de subjetivação para uns, e como um obstáculo à ascensão social para outros. A distância entre a cultura escolar e a cultura social (ou as culturas sociais) é tão grande que os estudantes têm o sentimento de viver em dois mundos completamente distintos.
Numa obra consagrada ao estudo da “relação com o saber”, considerado como uma maneira de se relacionar com o mundo, Charlot (2001) assinala que a aquisição do saber permite obter um certo domínio do mundo em que se vive, comunicar-se com os outros seres e dividir com eles o próprio mundo, além de tornar possível viver uma gama de experiências e se tornar melhor, mais seguro de si, mais independente.
A relação com o saber pode, portanto, ser definida como uma forma de relação com os processos (ato de aprender), com os produtos (os saberes são vistos como competências adquiridas, como objetos institucionais, culturais e sociais) e com as situações de aprendizagem.

2.7 O campo do currículo no Brasil
piSegundo Lopes e Macedo (2002), trata-se atualmente de um campo intelectual consolidado, subdividido em três grandes tendências.
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A primeira apresenta uma perspectiva pós-estruturalista, fundamentada nas reflexões de Foucault e nas teorias pós-modernas/pós-estruturalistas; dedica-se às produções discursivas diversas, aos processos de mudança e de reforma educacional, bem como ao exame do potencial dessas teorias na ampliação dos referenciais de análise e de crítica das propostas neoliberais para a educação.
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A segunda centra-se no currículo e no conhecimento em rede, motivada pelas discussões sobre o cotidiano e a formação de professores, e visa superar o enfoque disciplinar no espaço escolar, que deve ceder lugar aos outros saberes relacionados à ação cotidiana. Considera-se que “a noção de conhecimento em rede introduz um novo referencial básico, a prática social, na qual o conhecimento praticado é tecido por contatos múltiplos” (LOPES; MACEDO, 2002, p. 37). Essa tendência insiste na necessidade de romper alguns dos “nós cegos” das “redes de saberes” formalizados e regulados: “é a partir dessa necessidade/possibilidade de ruptura com os saberes prévios a respeito da realidade escolar que os estudiosos de currículo, voltados para a compreensão dos currículos reais no/do cotidiano escolar, procuram trabalhar” (ALVES; OLIVEIRA, 2002, p. 91).
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A terceira tendência refere-se à história do currículo e à constituição do conhecimento escolar, abrangendo o estudo do pensamento curricular brasileiro (que analisa as produções teóricas da área, as políticas curriculares, os currículos vigentes e a função do professor e do intelectual na constituição do campo e das práticas vivenciadas) e a problemática das disciplinas escolares (que supõe uma ampliação conceitual e metodológica da história, com ênfase para a etno-história e a compreensão do cotidiano das instituições). Segundo Moreira (2003, p. 35), “para os sociólogos das disciplinas escolares, a história do currículo tem por meta explicar por que certo conhecimento é ensinado nas escolas em determinado momento e local e por que ele é conservado, excluído ou alterado”. Além disso, esses estudos “têm sido realizados em associações que privilegiam a escola como uma instituição dotada de uma autonomia relativa, como uma totalidade em que o cultural e o social se apresentam mediatizados pelo pedagógico” (LOPES; MACEDO, 2002, p. 44).
Nota-se, enfim, que os estudiosos do currículo procuram aprofundar e diversificar mais e mais as concepções teóricas que fundamentam a organização escolar. Num exercício de síntese sobre a pesquisa em didática, Pimenta (2000, p. 83) recorre à noção de multirreferencialidade para assinalar que o trabalho conjunto entre professores e pesquisadores pode criar as condições objetivas para transformar a prática a partir da contribuição da teoria. Essa noção, salienta a autora, “comporta uma intenção claramente prática, mas também teórica, na medida em que possibilita melhor compreender as práticas, numa perspectiva que se aproxima da curiosidade científica, mas também ética”.


Após a leitura do Livro II - O currículo como instrumento de viabilização do direito à educação, vamos discutir de forma crítica e estabelecendo nexos entre conhecimento, currículo e cultura escolar, que constituem elementos primordiais para a realização dos processos de ensino e aprendizagem e, como tais, devem ser de domínio do gestor escolar, ao mesmo tempo em que são viabilizadores do usufruto do direito à educação.
Elabore uma síntese do texto co-relacionando os aspesctos mais relevantes para você:


Galera esse é o ultimo trabalho da disciplina, aproveite o tempo destinado as nossas aulas presenciais para realizar essa última atividade. A data final para postagem desta atividade é dia 03 - 01 - 11.
Foi uma satisfação trabalhar com vocês!!!


3 A reforma educacional e as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação básica
O currículo como elemento fundamental da reforma educacional dos anos 1990
O currículo escolar assumiu centralidade nas políticas educacionais do movimento das reformas educacionais realizadas na década de 1990. Embora essas reformas se constituam de ações nas mais diversas áreas da educação e compreendam mudanças nas legislações, nas formas de financiamento, na relação entre as diferentes instâncias do poder oficial (poder central, estados e municípios), na gestão das escolas, nos dispositivos de controle da formação profissional, na instituição de processos de avaliação centralizada nos resultados, são as mudanças nas políticas curriculares que parecem ter maior destaque, a ponto de serem analisadas como se fossem a reforma educacional em si (LOPES, 2004).
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As mudanças curriculares oficialmente implementadas assumem um enfoque sobretudo prescritivo, e cabe às escolas, dentro das suas possibilidades, materializar as orientações recebidas. É no cotidiano das escolas que se dá a devida implantação das inovações curriculares. A esfera governamental possui um poder privilegiado na produção das políticas educacionais e na elaboração dos currículos, porém, é na prática que as definições curriculares são recriadas e reinterpretadas.
hgO baixo impacto das reformas curriculares na realidade escolar tem sido, no entanto, insistentemente apontado pelos pesquisadores da área, o que nos leva à seguinte reflexão:
Qual a sua causa???
Vejamos:
Toda política curricular é uma política de constituição do conhecimento escolar: um conhecimento construído simultaneamente para a escola (em ações externas à escola) e pela escola (em suas práticas institucionais cotidianas). Como bem assinala Santos (2002), seria justo pensar que, definido um currículo nacional, selecionados os livros didáticos pertinentes a serem adotados pelas escolas, capacitados os professores, de forma a conduzir os trabalhos de maneira operacional com a finalidade de desenvolver as competências consideradas fundamentais para o exercício do seu trabalho, haveria clara melhoria no desempenho do sistema público particulamente da educação básica.No entanto, o processo de elaboração curricular é uma dinâmica constante de construção e reconstrução do currículo, o que se inviabiliza quando esse se cristaliza pura e simplesmente na forma de uma proposta fechada. Os diversos sistemas e as escolas não se apresentam como tábulas rasas, prontas a assimilar tudo que lhes é apresentado. Parâmetros e normatizações elaboradas central e externamente confrontam-se com inovações singulares, gerando muitas vezes conflitos com as práticas em desenvolvimento nas escolas oEstudos têm mostrado que muitos professores, mesmo quando aderem às novas propostas curriculares, buscam interpretá-las e adaptá-las de acordo com o contexto institucional do seu local de trabalho, dando características específicas aos conteúdos e às práticas de ensino. Também há situações em que as novas propostas trazem insegurança e inquietação aos docentes, porque rompem com práticas já estabelecidas. Como decorrência, as escolas reagem e resistem às novas propostas curriculares e cristalizam práticas tradicionais, revitalizando-as.
É importante, portanto, reforçar a compreensão de que o processo de elaboração curricular exige uma dinâmica constante de construção e reconstrução do currículo, com base em diretrizes para a sua organização em caráter nacional.
3.1 Parâmetros Curriculares Nacionais X Diretrizes Curriculares Nacionais
A questão curricular no plano político-institucional: Parâmetros Curriculares Nacionais X Diretrizes Curriculares Nacionais
A reforma curricular que vem sendo implementada desde os anos 1990 tem como força impulsionadora, particularmente, uma concepção produtivista de educação, que tem resistido a todos os embates de que foi alvo por parte das tendências críticas ao longo da década de 1980 (FRIGOTTO, 1986; GENTILI, 1998). Tal concepção, já presente nas décadas de 1960 e 1970, recobrou, a partir dos anos 1990, novo vigor no contexto do denominado neoliberalismo, jhacionada como instrumento de adequação e ajustamento da educação às demandas do mercado numa economia globalizada. Essa visão educacional tem suplantado sistematicamente outro corpo de idéias educacionais que colocam maior ênfase na qualidade social da educação. Saviani (2004) entende que a concepção produtivista marcou fortemente a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e suas normatizações posteriores, tais como as diferentes diretrizes curriculares.
A ênfase produtivista assinalada, esboçada no quadro político, econômico e social, no entanto, não tem se construído sem um embate constante com as forças que se preocupam com a qualidade social da educação. Esse embate ocorre também junto às instâncias político-institucionais responsáveis pelo ordenamento e execução da educação. Exemplo disso no campo curricular é o confronto entre os principais documentos oficiais que orientam as práticas escolares: os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Diretrizes Curriculares Nacionais.
Nesta parte do texto, pretendemos, de forma sucinta, apresentar o contexto que possibilitou a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais e de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica.
A intenção é que você, cursista, possa diferenciar esses dois documentos orientadores dos currículos escolares em nosso país.
Para iniciar, é importante destacar que a existência de Diretrizes Curriculares Nacionais é uma exigência constitucional. Vejamos o que está disposto no art. 22, inciso XXIV e no caput do art. 210 da Constituição Federal de 1988, que dizem, respectivamente:
Manter privativamente à União legislar sobre:
"diretrizes e bases da educação nacional";
"Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais"
Diretrizes curriculares são linhas gerais que, “assumidas como dimensões normativas, tornam-se reguladoras de um caminho consensual, conquanto não fechado a que historicamente possa vir a ter um outro percurso alternativo, para se atingir uma finalidade maior. Nascidas do dissenso, unificadas pelo diálogo, elas não são uniformes, não são toda a verdade, podem ser traduzidas em diferentes programas de ensino e, como toda e qualquer realidade, não são uma forma acabada de ser” (CURY, 2002, p. 194).

Por decisão da Lei no 9.131/95, que (re)criou o Conselho Nacional de Educação (CNE), atribuiu-se à sua Câmara de Educação Básica (CEB), entre outras competências, a função de deliberar sobre as diretrizes curriculares para esse nível de ensino. Contudo, já em 1994, a equipe de governo que tomou posse com a eleição de Fernando Henrique Cardoso teve a iniciativa de trazer à agenda política a discussão do que denominou Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).
3.2 Para entender melhor os PCNs – apontamentos históricos e conceituais
Para entender melhor os PCNs – apontamentos históricos e conceituais
kjElaboração e socialização: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) foram elaborados pelo MEC ao longo do período de 1995 a 1998, com a finalidade de expor a política de formação do governo federal. A primeira versão dos PCNs foi elaborada junto às Secretarias do MEC, com a participação de consultores especialistas. Tal versão foi submetida ao debate junto às Secretarias Estaduais da Educação e a outros setores da sociedade. Surgiram apoios e também contestações, particularmente no que se referia à metodologia utilizada para a sua elaboração, vinculada essencialmente a grupos escolhidos pela administração federal. Após amplo debate, os documentos foram aperfeiçoados e sua versão final apresentada formalmente ao Conselho Nacional de Educação.
kj O conceito: os PCNs são propostas detalhadas de conteúdos que incluem conhecimentos, procedimentos, valores e atitudes no interior de disciplinas, áreas e matérias articuladas em temas. Abrigam os componentes curriculares, tais como língua portuguesa, ciências, história/geografia, matemática, artes e educação física. Ao lado desses componentes, foi introduzida a noção de temas transversais (saúde, ecologia, orientação sexual, ética e convívio social, pluralidade étnica, trabalho e economia) com a finalidade de abrir espaço para tais conteúdos no âmbito do currículo.
Segundo Cury (2002), o MEC buscou, por intermédio dos PCNs, preencher o disposto na Constituição Federal e no Plano Decenal de Educação. No entanto, os PCNs não representam o conjunto de conteúdos mínimos e obrigatórios para o ensino fundamental, e também não chegam a ser uma proposta de diretrizes. Antes, apresentam-se como “um complexo de propostas curriculares em que se mesclam diretrizes axiológicas, orientações metodológicas, conteúdos específicos de disciplinas e conteúdos a serem trabalhados de modo transversal e sem o caráter de obrigatoriedade próprio da formação básica comum do art. 210 da CF/88” (CURY, 2002, p. 192
Os PCNs desencadearam amplo debate, tanto sobre o processo de elaboração da proposta quanto sobre certas características dos documentos.
A Câmara de Educação Básica do CNE percebeu que se tratava de uma política construída num movimento invertido, no qual um instrumento normativo de caráter mais específico, como os PCNs, foi construído e encaminhado de forma a orientar um instrumento de caráter mais geral, como as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs). Essa Câmara declarou, então, os PCNs não obrigatórios. Esse caráter não obrigatório dos PCNs foi a solução encontrada pelo CNE para firmar a sua competência de estabelecer as diretrizes curriculares.
Desse modo, atualmente, é importante conceber os parâmetros como apenas uma proposta dentre outras possíveis, retirando-se dos seus textos a marca de referência padrão. É crucial tal postura para a construção de novos sentidos para as políticas curriculares. Isso permitirá que outras propostas com princípios diversos, nos estados, nos municípios e mesmo nas escolas, tenham espaço para produzir novos sentidos para as políticas, valorizando o currículo como espaço da pluralidade de saberes, valores e racionalidades.
3.3 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação básica
O termo diretriz significa caminhos que são propostos e não imposição de caminhos. Significa um rumo a tomar, uma direção, um caminho tendente a um fim.
khhAo definir Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação básica, o Conselho Nacional de Educação estabeleceu conjuntos articulados de princípios, critérios e procedimentos a serem observados na organização, no planejamento, na execução e na avaliação dos diversos cursos e projetos pedagógicos dos sistemas de ensino e das escolas de todo o Brasil.
As atuais Diretrizes Curriculares Nacionais pretendem diferenciar-se de uma sistemática de fixação de currículos mínimos para cada curso ou modalidade de ensino, como ocorria no passado. Assim, apresentam-se como uma referência a ser utilizada com flexibilidade para dar conta da complexidade da estrutura federativa do país e da sua diversidade econômica e social, bem como das diferenças regionais e da pluralidade das características e possibilidades das unidades escolares e dos educadores brasileiros.
Todavia, é necessário que nós, educadores, estejamos alertas para a ambigüidade que está colocada, não propriamente no interior das diretrizes formuladas pelo CNE, mas no conjunto das políticas que estão sendo implementadas pela reforma educacional. Por um lado, a flexibilização curricular, significando possibilidades de diferenciação e diversificação, no ensino e na organização escolar, para um melhor ajustamento da educação às demandas do mercado numa economia globalizada e centrada no que alguns autores denominam de “sociedade do conhecimento” (CHAUÍ, 2003); por outro lado, a montagem cada vez mais aprimorada de um “sistema nacional de avaliação”, centralizado no MEC, através do controle do rendimento escolar em todos os níveis, desde a creche até a pós-graduação.
Segundo Bonamino e Martinez (2002), três documentos elaborados pela Câmara de Educação Básica do CNE são fundamentais para a análise das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs):
- a Exposição de Motivos ao encaminhamento das DCNs
- a Resolução CNE/CEB no 2, de 7 de abril de 1998 (posteriormente alterada pela resolução CNE/CEB no 1, de 31 de janeiro de 2006)
- o Parecer CNE/CEB no 4, de 29 de janeiro de 1998.
3.4 DCNs
A Resolução no 2, da Câmara de Educação Básica, apresenta as DCNs como:
o conjunto de definições doutrinárias sobre princípios, fundamentos e procedimentos na Educação Básica, (...) que orientarão as escolas brasileiras dos sistemas de ensino, na organização, na articulação, no desenvolvimento e na avaliação de suas propostas pedagógicas (p. 1).
Vale destacar que o Parecer da CNE/CEB no 4/98 e a Resolução CNE/CEB no 2 propõem sete diretrizes como referência para a organização do currículo escolar. Bonamino e Martinez (2002) destacam-nas da seguinte forma:
~ç1) As escolas deverão fundamentar suas ações pedagógicas em princípios éticos, políticos e estéticos. Tais princípios são complementares e relacionam-se à autonomia, responsabilidade, solidariedade, cidadania e vida democrática. Os documentos consideram ainda a existência de princípios estéticos da sensibilidade, que devem conduzir as ações pedagógicas escolares ao reconhecimento da sensibilidade e criatividade do comportamento humano e à valorização da diversidade de manifestações artísticas e culturais da realidade brasileira (BRASIL, 1998a, p. 1).
~ç2) Uma segunda diretriz diz respeito ao reconhecimento da identidade pessoal de estudantes, professores e demais profissionais que atuam na educação escolar, bem como ao reconhecimento da identidade institucional das escolas e dos sistemas de ensino. Aponta-se, então, para a necessidade de a escola acolher as diversidades e peculiaridades étnicas, etárias, regionais, socioeconômicas, culturais, psicológicas, físicas e de gênero das pessoas implicadas diretamente com a educação escolar. Tal postura vai ao encontro de dispositivos constitucionais e do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que reconhecem a dignidade da pessoa humana (arts. 1o, 2o e 3o da CF), a igualdade perante a lei (art. 5o da CF), a necessidade de repúdio e condenação a quaisquer formas de discriminação (art. 3o da CF) e a promoção dos direitos humanos (PNDH).
~ç3) A terceira diretriz considera o processo educacional como uma relação indissociável entre conhecimentos, linguagem e afetos, constituinte dos atos de ensinar e aprender. A afirmação dessa perspectiva conduz à valorização do diálogo e à adoção de metodologias diversificadas em sala de aula, isto é, de múltiplas interações estudantes/estudantes, professores/estudantes, estudantes/livros, vídeos, mídia, materiais didáticos etc., que permitam a expressão de níveis diferenciados de compreensão, conhecimentos e valores éticos, políticos e estéticos.
3.5 DCNs continuação...
sa4) A quarta diretriz apóia-se no art. 9o da LDB para estabelecer conteúdos curriculares mínimos para a chamada Base Nacional Comum. Destaca o Parecer:
[...] a instituição de uma Base Nacional Comum com uma Parte Diversificada, a partir da LDB, supõe um novo paradigma curricular que articule a Educação Fundamental com a Vida Cidadã. O significado que atribuímos à Vida Cidadã é do exercício de direitos e deveres de pessoas, grupos e instituições na sociedade, que em sinergia, em movimento cheio de energias que se trocam e se articulam, influem sobre múltiplos aspectos, podendo assim viver bem e transformar a convivência para melhor (BRASIL, 1998b, p. 9).
Nessa perspectiva, a Base Comum e a Parte Diversificada devem articular cidadania e conhecimento nos currículos da educação fundamental. A “vida cidadã” diz respeito a aspectos relacionados com saúde, sexualidade, vida familiar e social, meio ambiente, trabalho, ciência e tecnologia, cultura e linguagens. Já as “áreas de conhecimento” se referem à Língua Portuguesa, Língua Materna (para populações indígenas e migrantes), Matemática, Ciências, Geografia, História, Língua Estrangeira, Educação Artística, Educação Física e Educação Religiosa (BRASIL, 1998b, p. 7). Estabelece-se, assim, uma estrutura curricular básica, na qual os aspectos mais inovadores estão relacionados à “vida cidadã” e evocam os Temas Transversais.
sa5) A quinta diretriz, em consonância com o art. 27 da LDB, orienta as escolas no sentido da condução de propostas curriculares e de processos de ensino capazes de articular os conhecimentos e valores da Base Nacional Comum e da Parte Diversificada ao contexto social (BRASIL, 1998b, p. 11).
sa6) A sexta diretriz enfatiza a autonomia escolar e fundamenta-se novamente na LDB para orientar as escolas no uso da Parte Diversificada do currículo no desenvolvimento de atividades e projetos de seu interesse específico (BRASIL, 1998b, p. 11). A diretriz apóia-se na LDB (art. 9o, IV) para reafirmar a competência de estados, municípios e estabelecimentos escolares no sentido de complementarem os currículos mínimos com uma parte diversificada.
sa7) A sétima diretriz pondera sobre propostas pedagógicas capazes de zelar pela existência de um clima escolar de cooperação e de condições básicas para planejar os usos do espaço e do tempo escolar. Diz respeito à interdisciplinaridade e transdisciplinariedade, do sistema seriado ou por ciclos, do currículo.
Em síntese, a análise do processo de elaboração das DCNs nos permite verificar as tensões provocadas pelas diferentes perspectivas político-institucionais, sustentadas pelo MEC e pelo CNE, a respeito do papel que cabe ao Estado em relação à elaboração curricular.
Como você estudou até aqui, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação básica são um conjunto de princípios, critérios e procedimentos a serem observados no planejamento e na organização das atividades, e na execução e avaliação dos cursos e projetos pedagógicos das escolas e sistemas de ensino.
A aprovação das primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais data de 1998. A partir dessa data, foram sendo produzidas, por meio de pareceres e resoluções, as demais Diretrizes Curriculares referentes a diferentes etapas e modalidades da educação básica.
A seguir, você verá uma lista com os pareceres e resoluções relacionadas às diretrizes para as diversas etapas e modalidades da educação básica.
3.6 Pareceres e ResoluçõesEDUCAÇÃO INFANTIL
Parecer CNE/CEB no 22/1998: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.
Resolução CNE/CEB no 1/1999: Instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.
Parecer CNE/CEB no 4/2000: Diretrizes Operacionais para a Educação Infantil.
ENSINO FUNDAMENTAL
Parecer CNE/CEB no 4/1998
: Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental.
Resolução CNE/CED no 2/98: Instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental.
ENSINO MÉDIO
Parecer CNE/CEB no 15/98
: Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
Resolução CNE/CEB no 3/98: institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Parecer CNE/CEB no 11/2000
: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos.
Resolução CNE/CEB no 1/2000: estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos.
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL DE NÍVEL TÉCNICO
Parecer CNE/CEB no 16/99
: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico.
Resolução CNE/CEB no 4/99: institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Técnico.
EDUCAÇÃO ESPECIAL
Parecer CNE/CEB no 17/2001
: Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica.
Resolução CNE/CEB no 2/2001: institui as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica.
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA.
Parecer CNE/CEB no 14/99
: Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação escolar indígena.
Resolução CNE/CEB no 3/99: Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas e dá outras providências.
EDUCAÇÃO BÁSICA NAS ESCOLAS DO CAMPO
Parecer CNE/CEB no 36/2001
: Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo.
Resolução CNE/CEB no 1/2002: institui as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo.
4 Referências

Equipe responsável pela elaboração do conteúdo desta Sala Ambiente
Alfredo Macedo Gomes - UFPE
Janete Maria Lins de Azevedo - UFPE
Leda Scheibe - UFSC

Unidade II

ARROYO, M. G. Secretaria de Educação Básica (org.). Os educandos, seus direitos e o currículo: documento em versão preliminar, 2006.
BONAMINO, A.; MARTÍNEZ, S. A. Diretrizes e Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental: a participação das instâncias políticas do Estado. Educação & Sociedade. vol. 23. no 80. p. 368-385. Campinas: set., 2002.
BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. Les héritiers: les étudiants et la culture. Paris: Éditions de Minuit, 1984.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Conselho Nacional de Educação. Câmara da Educação Básica. Resolução no 2, de 7 abril de 1998. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental. Diário Oficial da União. Brasília: 15 abr. 1998a.
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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O Luizinho da segunda fila


Marcelo é um excelente professor de Geografia.
Na aula sobre o Pantanal até excedeu-se. Falou com entusiasmo, relatou com detalhes, descreveu com precisão. Preencheu a lousa com critério, soube fazer com que os alunos descobrissem na interpretação do texto do livro a magia dessa região quase selvagem. Exibiu um vídeo, congelou cenas e enriqueceu-as com detalhes, com fatos experimentados, acontecimentos do dia-a-dia de cada um.
Em sua prova, é evidente, não deu outra: uma redação sobre o tema e questões operatórias que envolviam o Pantanal. Seus rios, suas aves, sua vegetação... a planície imensa. Os alunos acharam fácil. Apanharam suas folhas e começaram a trazer, palavra por palavra, suas imagens para o papel. As canetas corriam soltas e as linhas transformavam-se em parágrafos. Marcelo sabia o quanto teria que corrigir, mas vibrava... Sentia que os alunos aprendiam. Descobria o interesse que sua ciência despertava. Não pôde conter uma emoção diferente quando Heleninha, sua aluna predileta, foi até sua mesa e arfante solicitou:
- Posso pegar mais uma folha em branco?
O único ponto de discórdia, o único sentimento opaco que aborrecia Marcelo, era o Luizinho, aquele da segunda fila. - Puxa vida! - pensava - Luizinho assistira todas as suas aulas, arregalara os olhos com as explicações e agora, na prova, silêncio absoluto, imobilidade total... nem sequer uma linha. Sentiu ímpetos de esganar Luizinho. Mas, tudo bem, não queria se irritar. Luizinho pagaria seu preço, iria certamente para a recuperação. Se duvidassem poderia, até mesmo, levá-lo à retenção. Seria até possível arrancar um ano inteirinho de sua vida...
Minutos depois, avisou que o tempo estava terminando. Que entregassem sua folha. Viu então que, rapidamente, Luizinho desenhou, na primeira página das folhas de prova, o Pantanal. Rico, minucioso, preciso. Marcelo emocionou-se, ao ver aquele quadro, de irretocável perfeição, nas mãos de Luizinho que coloria as últimas sobras. Entusiasmado indagou:
- E aí, Luís? Você já esteve no Pantanal?
Não. Luizinho jamais saíra de sua cidade. Construiu sua imagem a partir das aulas ouvidas. Marcelo sentiu-se um gigante e, de repente, descobriu-se o próprio Piaget.
Havia com suas palavras construído uma imagem completa, correta e absoluta na mente de seu aluno.
Mas, deu zero pela redação. É claro. Naquela escola não era permitido que se rabiscassem as folhas de prova. A história de Luizinho repete-se em muitas escolas.
Sua inteligência pictórica é imensa, colossal, lúcida, clara e contrasta visivelmente com as limitações de sua competência verbal. Expressou o que sabia, da maneira como conseguia.
Mas, não são todos os professores que se encontram treinados para ouvir linguagens diferentes das que a escola instituiu como única e universal.
Celson Antunes

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A fábula da professora e as uvas

Durante sua vida universitária curtiu adoidadamente as rodadas de chope, as aulas cabuladas para passeios noturnos, ou os adoráveis bate-papos e paqueras próximas à cantina. Vez por outra, assistiu aulas. Menos pelo interesse em aprender e muito mais para escapar do regime de faltas e para ver se, com prudência e malícia, podia colar esta ou aquela resposta de um colega mais distraído. Concluiu seu curso como muitos concluem, valorizando apenas o valor profissional do Certificado.
Atirada ao mercado de trabalho, tratou de procurar aulas. Seu primeiro anseio foi a escola particular do bairro de classe alta, ajardinada pelas mensalidades salgadas onde, segundo diziam, pagava-se mal os mestres mas os enchia de vaidade.
Entrevistada pela Orientadora Educacional, foi rispidamente desiludida:
- Ah, minha filha. Embora estejamos precisando de professores, não é possível contratá-la. Em dez minutos de entrevista você cometeu doze erros de Português e é justamente essa disciplina que você quer ministrar. Não é possível.
Sem desanimar com esse primeiro “não”, partiu para uma segunda, depois para uma terceira, quarta e quinta escolas, chegando até às entrevistas, mas não sobrevivendo aos desafios impostos pelas mesmas. Seu desânimo maior foi atestado por um porteiro da sexta escola procurada que, ao ouvir suas lamúrias, filosofou com a sabedoria dos simples:
- Não adianta não, moça. Para que se contrate professores é necessário o conhecimento de pelo menos um pouco da disciplina, caso contrário, podem ser admitidas como inspetoras de alunos mas, como a menina pode ver, nessas funções todos os cargos já estão preenchidos.
Após outras tentativas como a de deixar o nome nas delegacias de ensino, sindicatos e colegas colocados, percebeu que o vazio de seus tempos de estudante se refletia na agonia do desemprego. Retirando-se para a casa dos pais, passou a investir em um casamento que não a estimulava mas rendia saldos. E ponderou:
-Graças a Deus. Até que sou uma pessoa de sorte. Imagine, eu tendo que suportar o sacrifício de dar aula para alunos ricos ou, pior ainda, para os da escola pública! já pensou na chatice de agüentar crianças e adolescentes? já imaginou a necessidade de se atualizar sempre e ter que ler jornais pelo menos uma vez por semana? Nada como ficar desempregada e pensarem fundamentos epistemológicos aqui em casa, onde meu analfabetismo jamais será descoberto.
Moral: Falsos mestres, ao invés do desafio da aula, preferem demagogicamente filosofar...